Valas de Triunfo

Corria o ano de 2024, com 2025 à porta. Entre a verdade da mentira e a mentira da verdade, as imagens da TV competiam com as das redes sociais. Pelo que foi noticiado, as campanhas de novembro azul foram sobrepostas pelas campanhas de vermelho derramado. Num lapso de tempo de 20 primaveras, “aquele que mais ordena” mostrou que não estava preocupado com a próstata, mas sim com a algibeira. A soberania popular, não se sabe se no seu auge ou se no seu crepúsculo, fez nascer novos solstícios no Estado de Maringauta.

As notícias todas davam conta que, depois do servidor dos serviços secretos ter sido pirateado, o relatório sobre a descarbonização foi desqualificado. Um jornal local logo fez transbordar seu conteúdo e o mundo ficou a saber que o território desse Estado alberga, no seu subsolo, as maiores quantidades de pedras, terras e areias preciosas de todo o golfo dos gladiadores. Segundo o pivô da “NewsTV”, por ser muito cobiçado pelos magnatas do além-fronteiras, os campos de golfe que cobrem a extensa área de jazigos passaram, logo, a ser geridos por Calvin, o filho mais velho do Presidente Astúcias. Este, para manter uma paz podre, mas que fosse conveniente ao poder que detinha nas mãos, tomava as mãos das damas de copas dos países em emergência e oferecia, em troca, algum equipamento de treino ao alvo.

Enquanto os magnatas se entretinham a disparar contra as aves de rapina, Astúcias festejava e disparava contra os altares de Vénus. Com a chegada da inteligência artificial, as calculadoras foram todas jogadas nas ilhotas do lixo, tendo-se perdido, assim, as contas aos herdeiros do Presidente de Maringauta. Deste modo, pensava este ter conseguido firmar Calvin como o “chefe de polícia” do condado universal e assim poder baralhar as cartas e as damas todas.

Entretanto, os prémios de melhor filme e de melhor atriz foram atribuídos a outros protagonistas. No cair da meia-noite e em toda a largura do ecrã televisivo, meus olhos ainda estavam fixados na imagem da dama de copas Joana Descansada, na sala de Óscares e ainda com o Globo de Ouro em mãos. Graças à rede de alta velocidade da “Estrela Link”, a transmissão direta da cerimónia de premiação, a partir de Hollywood, chegava em tempo real, sem cortes nem censuras. Com as costuras dos bordados a iluminar a beleza do decote, a premiada estava atónita e sem sequer conseguir fazer o seu discurso, de tão intenso era o olhar sedutor do Presidente Astúcias.

Convidada por este a visitar o palácio do ouro e antes que pudesse balbuciar um sorriso temeroso ou alegre, aquela que seria a quase última dama a ser importunada, rogou uma praga ao Presidente, com a ponta da língua. A pressa deste encarou o gesto como um insulto e o seu charme levou a dama e o Globo para um minúsculo e semiescuro corredor de madeira. Entretanto, alguém se esquecera de desligar as câmaras de vídeo vigilância. Minutos depois, no momento em que as mãos astuciosas mandaram sair uma bala do invólucro, caiu de joelho o Presidente Astúcias sobre o molho de tomates. As provas do ocorrido eram contundentes.

Em menos de 20 e 4 horas sobre o fatídico incidente, realizava-se o funeral do pai de Calvin, que fez luto durante 75 dias. 20 e 4 horas depois, tomava para si a coroa. Após regressar do velório, mandou publicar um edital potestativo de manifestação de interesse em todas as bacias e golfos da envolvente imediata de Maringauta. Tão rápida foi a difusão da notícia, também foi a reação dos pretensos irmãos de sangue de Calvin. Aqueles, a mando do falecido vinham espalhando sangue dos inocentes que, ingenuamente, davam guarida aos estripadores da alma e da mente. Ao pegar em suas próprias mãos a certidão de óbito daquele que a mãe lhes dizia ser o pai, muitos foram os estripadores a aproximar-se de Calvin, para reivindicar os seus direitos. Entretanto, já no dia do funeral de seu pai, Calvin tinha ordenado a invasão da conservatória dos registos centrais e mandara destruir todos os documentos.

Porém, 20 e 4 horas depois de Calvin sentar-se no trono, três homens armados até aos dentes fizeram-se irromper pela sala dos ovos de ouro. Ainda a assinar ordens para excursões, o sorriso amarelo de Calvin fez falar as duas orelhas que, ‘em alto e bom som’, fizeram-se ouvir: – “Sejam muito bem-vindos, meus irmãos de sangue, meu pai sempre falou de vocês os três. Estava mesmo à vossa espera.  Sintam-se em casa”. Sentaram-se então Burgo, Yannick e Joshua. – “Que a paz imposta reine entre nós!”, afirmaram os três homens, todos vestidos de preto.

Burgo tomou a palavra para expressar a sua convicção de que uma nova ordem galáctica se aproximava do planeta Terra e que receava por uma terceira guerra mundial. Por sua vez, Yannick mostrou-se bastante preocupado com a possibilidade de ser atacado por armas de destruição maciça e que não mais pudesse continuar com a sua aventura de descobrimentos dos betões e recobrimentos com escombros. Joshua, aparentemente tímido, porém, o mais temido dos irmãos, porque tido como um louco varrido pelo bafejo das ogivas, mal pôde expressar suas convicções porque as emoções se misturaram entre lágrimas de vibração e de gratidão. Ainda assim, fez recordar aos presentes que era preciso respeitar a memória do tio Sam e também levar em conta os sorrisos do tio Sushi. Calvin acalmou os ânimos e pediu aos irmãos que regressassem tranquilos e de livre vontade aos seus respetivos países, porque tudo ia ficar bem, em 20 e 4 horas.

Terminada a primeira reunião do GMS-4, na era pós-Astúcias, Calvin logo enviou bombas de oxigénio para o estado liderado por Yannick, pois este começara a sofrer do síndrome do hidrogénio e os pulmões do seu coração davam já sinais de desintegração, com o rompimento de algumas válvulas do extremo direito. A podridão da paz semeada pelo pai de Calvin tinha permitido a Yannick abrir valas, construir cemitérios por baixo de escombros e ali plantar corpos sem ombros. Depois de exterminar vários dos exterminadores implacáveis, a troca de corpos era apenas o mote para silenciar os motins e colonizar novas colmeias.

Burgo também regressou à sua terra natal, de onde a sua verdadeira face nunca tinha saído. O seu sósia, que tinha eliminado o seu perigoso sobrinho, andava em conversas de trégua para estancar um plano da “Aleatória’s Secret”, de vender drones em formas de cuecas e soutien, a ver se ludibriava a visão alucinante do imperialista burguês. Com o ano de 2025 em andamento e o tempo parado a observar os acontecimentos, as 20 e 4 horas ainda estavam na estrada, Burgo e Yannick continuavam sua saga devastadora, pois tinham o apoio incondicional de Joshua, amigo incontestável de Calvin. Porém, o baralho de cartas começava a dar sinais de poluição atmosférica e alguns incendiários do atual e do antigo continente começaram a tremer de ansiedade.

O nervosismo toca a mente brilhante de um ser ostensivo, que esboça estender seus tentáculos aos extremos da face destra. Calvin sente-se ainda mais confortável, pois um sonho delirante sopra-o no ouvido direito que o foguetão jamais cairá em desintegração e ele inicia, então, o processo de integração das fronteiras aliciantes. Começou a Norte com a cana que dá açúcar e prosseguiu a Sul com o pano do mar. Nesse momento, uma outra estação televisiva mostrava que um dos lados do sorriso enigmático do tio Sushi começava a encolher. O confronto de sorrisos com Calvin parecia, pois, inevitável. Tido como um opositor acérrimo ao conhecimento do sexo dos anjos e um praticante assíduo do sexo forçado, as imagens de TV não pareciam Fake News, quando o mundo contemplou a canetada que ordenava a saída dos calabouços, dos “injuriados pela Justiça”. Com a coragem enlatada na garganta, a sedução no canto dos olhos e as mãos apetrechadas de dinamite, Calvin e os tripulantes de cabine, fizeram-se aos céus em busca de novos paraísos fósseis.

Sob o olhar sonolento do hexágono e com os radares de Ontário desligados, o pouso na “Green and Land” foi como colocar doces na boca de uma criança. Nem mesmo o mais otário das mentes brilhantes encontrou a lucidez para argumentar e permanecer no local. A debandada dos ilhavenses foi total e a invasão dos mineiros colocou a céu aberto as valas de triunfo, mesmo sem a presença dos algemados e acorrentados de Minas Gerais. Em “Green and Land”havia muito gelo e não havia mato, nem grosso nem fino e o sol da meia-noite permaneceu calado e nada falou a respeito da invasão da ilha.

Porém, temendo que as luzes do norte fossem falhar durante o inverno, por causa do corte na aurora gasosa, os naturalistas e os anciãos do antigo continente colocaram em marcha o seu plano de contingência. Com fardamento e equipamento bélico do mais alto nível tecnológico, tanto as beldades como os playboy foram autorizados a juntar-se ao pelotão de fuzileiros navais. Pois, estava iminente um ataque em larga escala universal, por parte de forças de elite de um triatlo adverso de operações. O teatro vinha sendo montado muito tempo antes do dia 20H e bastaram apenas 4 horas, para que o pendrive com as informações secretas fosse descoberto por um dos empregados da nata mais chegada a Calvin. Entretanto, o segredo fugiu e foi ter à casa dos átomos para lhes entregar o cianeto. Mas a dona de casa já não tinha mais natas e o chantilly transformou-se em acervo de chantagens.

Entrementes, o contrabando de informações fazia aquecer os neurónios das fibras óticas enquanto a “Estrela Link” ordenava a liberalização de utilização massiva do “TokTick” e mandava para as calendas gregas os Check-Fact. Concomitantemente, o sabor do “Tic Tac” estava já bastante amargo e azedo, que as agulhas do relógio no Pólo Norte pendulavam desorientadas. Aproveitando do desacerto na ponta da língua dos anti ortodoxos, Burgo e Yannick continuavam a abrir mais valas de triunfo e a instalar novas colmeias. Este último, motivado pelas bombas de oxigénio que recebera, seu peito encheu de hidrogénio e, da ponta da língua, disparou um míssil em direção à zona vizinha de Atalaia. O palácio do Aiatola foi atingido e a Xaria não pôde fazer milagre algum. O Xeque-Mate foi mortal e várias cabeças de Sheiks rolaram em direção às valas descomunais. O colapso estava iminente e o colossal parecia estar a definhar-se. Os horários desencontraram-se e o tio Sushi encurtou os dois lados do sorriso e mandou entrar em cena os iscariotes. Os ateus ainda ansiavam por um diálogo Norte-Norte, porém, os deslocados do Sul Global já estavam com demasiado sal na ponta da língua e nada os faria mover das faixas do areal das praias de mar. Ao menos ali podiam morrer afogados e não carbonizados.

Extremamente irritado com tantas “provocações e atrevimento”, Calvin enviou todos os seus aviões portáteis para os teatros das operações.  Como não havia natas suficientes do lado da cara-metade, o fervor das conquistas, das vitórias e dos triunfos se esbarraram com a inteligência facial do “KeepSleek”. A magreza da fome, estampada na face dos deslocados que ainda resistiam ao extermínio, contrastava com o sorriso belicista de Yannick. A tensão arterial aumentava e o fluxo de material bélico também. O tempo foi-se embora, juntamente com as 20 e 4 horas. O sol e a lua também fugiram, ante a iminência de uma guerra nuclear.  As retinas das alterações climáticas, de tão embaçadas com a emissão de gases, já não conseguiam distinguir o joio do trigo e todas as plantações eram fustigadas pela fúria da natureza. Ainda assim, no meio às tempestades, incêndios, inundações e derrocadas, os navios de guerra enfrentavam os furacões, os drones tentavam fintar os relâmpagos e os soldados tentavam escapar ao lamaçal de minas e às ameaças de tortura e morte. Tudo para fazer valer as “Valas de Triunfo”, as “Operações Especiais” e não deixar morrer os “Planos de Vitória”.

Na sala oval, as galinhas de ovos de ouro foram todas colocadas num bunker. Ao lado, na sala de controle operacional, tentava-se, através de sessões intensas de videoconferência, uma solução para o conflito, antes que algum louco varrido pelo bafejo das ogivas carregasse no botão vermelho. A expulsão da Cruz Vermelha e dos capacetes azuis não era um bom sinal para a paz. Por outro lado, reinava uma desconfiança total nas linhas aéreas por causa da psicologia das cores, que andava a baralhar os cálculos dos controladores do tráfego aéreo, segundo a análise científica de Calvin. Ademais, o episódio com o sobrinho perigoso de Burgo acentuava ainda mais a desconfiança entre os párias do jogo “Valas de Triunfo”.

As conferências de paz duraram o tempo que foi possível. Chegaram ao fim e nenhum acordo foi alcançado. A guerra de nervos, de palavras e de intimidações prevaleceu. As ameaças de pesadelos entraram nos navios, para testar os canais e os portos todos. Novas artilharias e arsenais foram enviados à terra santa, para dar sinais ao Monte Sinai: a narrativa do “a jeito ou à força militar” não deve ser encarado como piada de palhaço. Já com a madrugada a despedir-se da noite dos Óscares, a esperança ia abraçando todos os artistas e pedir-lhes que trespassassem esse abraço à humanidade, através das suas artes. O desejo da esperança é impedir que a abertura de valas descomunais, seja para esconder os raptados ou os raptores, seja para enterrar os exterminados, continue a avançar faixa adentro; que o discurso com a cicuta na ponta da língua não tenha mais reedições; que a sensatez da responsabilidade saiba escolher os termos para um acordo que vise a paz pela paz;  que o medo e o sofrimento  deixassem de ser as armas de destruição maciça, pois os loucos bélicos podem sê‐lo fora do controlo emocional e algum botão pode mesmo ser apertado. Aquilo que o abraço da esperança alerta é para o facto do botão vermelho com que o mundo é ameaçado, é um pretexto para semear o caos, a divisão e a invasão impune.

A imposição de fitas em formas de taxas aduaneiras é apenas um mecanismo de distração para com os crimes contra a humanidade. A promoção do namoro entre os anjos é e será uma mera abstração para fomentar o narcisismo dos santos. E o fomento de notícias falsas bem como a censura à liberdade de expressão serão as novas disciplinas nas escolas que tiverem ficado em pé. E as pessoas que não morreram, mas perderam os seus pés, sequer terão um hospital de pé para curar as suas feridas. Aqueles seres humanos que conseguirem ver-se livres das algemas e das correntes, certamente passarão a ter uma ideia básica do que foi a escravatura. Porém, aqueles que resolverem abraçar a desperança terão a companhia da escravidão mental, até que o sonho se transforme em realidade.

Do achado no pendrive, o que não foi revelado é se a “Estrela Link” terá capacidade de apagar todas as memórias sobre valas comuns e substituí-las por memórias de valas de triunfo. Dos documentos desclassificados, não se consegue extrair informações relacionados com o planeta onde passarão a viver Calvin e os seus irmãos. O Alcorão não revela se o tio Sam será ressuscitado, tão pouco a Bíblia revela se os Aiatolas o serão também. O que se sabe é que os braços do oceano continuarão a abraçar o sonho dos povos, que os sóis do meio-dia e da meia noite continuarão a iluminar a mente da coragem e o luar noturno e diurno continuará a alimentar o estômago da esperança daqueles que acreditam na paz pela paz. O que se sabe é que a pobreza não existe, mas sim, que é uma invenção para ludibriar os menos atentos, para os entreter em corridas atrás de camiões e os afastar das salas de aprendizagem e de formação. O que se sabe é que a fome foi criada para alimentar as carteiras de investimento dos senhores da guerra. E o que se finge não saber é que quem doa alimentos numa mão corta a outra mão. É o jogo da incapacitação física e psicológica, visando a exploração humana, de forma permanente e continuada no tempo.

Na madrugada dentro e ao final dos noticiários televisivos, os softwares de inteligência artificial entraram num novo palco de confrontação. A produção de informação ultrapassou a velocidade da luz e a mente humana se anestesia com os efeitos das alterações climáticas. As cores do arco-íris começaram a desvanecer-se do ecrã televisivo. As minhas retinas acusaram o cansaço e a minha mente se retraiu completamente, atingido por uma das balas perdidas da hipocrisia. O pivô de um dos canais televisivos anunciou o fecho de emissões, por ordens executivas de Calvin, informando que em 20 e 4 horas todos os canais de sinal aberto seriam classificados. O jogo das Valas de Triunfo só poderia ser acompanhado, a partir de então, nas redes XKM, mediante compra de direitos. Por bem ou por mal, informou o corretor que há verbas suficientes para qualquer cidadão do espaço comunitário aceder a mecanismos de financiamento. Não tendo eu força anímica para confrontar esta narrativa, resta-me, por ora, despedir-me deste conto, sem acrescentar mais nenhum ponto. Até porque sinto um barulho no meu quintal e o meu cão parou de latir. Este é o último click, para salvar nas nuvens esta história.

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