A mãe comprou um vestido para si, pensando que com ele estaria bonita, mas não gostou. Ruivinha, a filha mais velha, na casa dos catorze e quase a chegar aos quinze, enfiou-se no vestido e gostou. A mãe desligou-se então da veste, despediu-se da filha e foi ter com os ares da rua. Ruivinha, deleitada com a formosura do vestido, deixou-se ficar deitada no sofá e acabou por abraçar o sono. Sem ser avisada pelo tempo, o espanto a chamou, alertando-a que astros pretendiam tocar-lhe a vénus. A boca se assustou, mas não pôde gritar, porque, nesse momento, quatro mãos a intimidaram.
(…)
De um conto de fadas desejado, Ruivinha passou para uma novela trágica. O primeiro astro seduziu a menina dentro da casa da mãe. Tirou-lhe a Virgem, agarrando-a pela idade de nove anos, até que a menina não mais suportasse, já na casa dos onze. Foi então que ela se explodiu e a Virgem Maria ajudou-a a contar à mãe o sucedido. Não havia testemunhas, mas o Juiz aceitou a queixa. No compasso de espera, um novo astro entra em cena, para fazer cenas de empurra-sai com o outro.
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Saturada, marcada pelas palavras dolorosas do pai, ciente do desconhecimento da mãe pelo alfabeto e por uma postura desconcertante desta, um fio de navalha cortou o umbigo da Ruivinha. Sua boca permaneceu em silêncio, sob a ameaça dos dois vultos, bem conhecidos. De signo Balança, a menina, que estava prestes a deixar as catorze primaveras, rompeu a corrente. Sua mocidade foi brutalmente violentada, durante longas primaveras. Mas sua tenacidade cravou-lhe no peito uma balança, vendou os seus olhos e, nas suas mãos, colocou uma espada. Vencida a frustração, um sonho novo acabaria por entrar no percurso de vida da Ruivinha, que ainda precisa escrever cinco páginas, até chegar ao quarto de século da página do livro da sua vida. E sua boca jamais permaneceria sob as trevas da intimidação, prometeu-se a si mesma.
Emanuel A. R. Furtado
Em “O beijo da aranha” (Livro de contos, para publicação)
